
LUCRO A QUALQUER CUSTO?
O livro “Dobre seus lucros”, de Bob Fifer, editado pela Harper Collins, bem que poderia se chamar “Lucro a qualquer custo”. Seria mais preciso e exato.
Entre outras várias sugestões que visam otimizar lucros, saltam aos olhos algumas draconianas, extremamente rigorosas, a exemplo das medidas de Dracón, o legislador ateniense que viveu no século VII a.C. Surpreende que em pleno século XXI d.C. ainda tenhamos pessoas empoderando o lucro haja o que que houver, custe o que custar.
A meu ver, algumas das medidas sugeridas pelo autor assumem conotações do sadismo, de quem tem prazer com o sofrimento do outro. Em especial a que se segue, ipsis litteris:
“Um método fácil de favorecer o balanço da sua empresa este ano (embora só funcione uma vez) é atrasar seus pagamentos. A maioria dos fornecedores prefere esperar para receber a perdê-lo definitivamente como cliente.
Passe a pagar suas contas em 45 dias, depois sessenta dias, depois em três ou seis meses, no caso dos fornecedores mais tolerantes. Nunca pague uma conta até que o fornecedor pergunte por ela pelo menos duas vezes. Certos fornecedores chegam a levar até dois anos para reclamar o pagamento de uma conta.” (Pg: 97)
Já tinha ouvido comentários contundentes sobre este trecho em especial. Mas confesso que o efeito da leitura na fonte original me causou espanto na primeira leitura e náuseas na segunda.
Este trecho do livro, como várias das suas propostas, explicita de maneira inequívoca e, de certa forma, ofensiva a constatação de uma relação de força entre parceiros a ponto de naturalizar a subserviência dos mais vulneráveis. O que importa, para o autor, é o lucro a qualquer custo.
Fiquei muito tempo refletindo sobre o caso daquele fornecedor que se submete a estas condições, de ficar até dois anos sem receber pelos produtos vendidos ou serviços prestados. Somente alguém em situação de vulnerabilidade extrema iria se submeter a esta condição. Dito de outra forma, Bob Fifer sugere estrangular aquele fornecedor que certamente já se encontra em dificílima situação.
Uma coisa é uma empresa que se encontra em dificuldades financeiras atrasar o pagamento dos fornecedores. Mas alguém que execute este tipo de procedimento visando apenas a obter melhores resultados, maiores lucros, perdeu por completo a noção de respeito, de limite.
Salve-se quem puder para ter lucro a qualquer custo
Você já ouviu o provérbio popular de que se conselho fosse bom, não se daria, se vendia? Pela bagatela do preço do livro, você também terá acesso aos conselhos pessoais do autor, que visa o lucro a qualquer custo.
Na parte V do livro, intitulada “Conselhos pessoais”, ele cita eventos que vivenciou e que ajudou a formar sua convicção sobre estratégias bem-sucedidas. Me chamou a atenção um arremate no qual afirma: “insista e vença os adversários pelo cansaço”. O autor não deixa nenhuma dúvida que os fins justificam os meios e às favas com a ética. O que importan, para ele, é o lucro a qualquer custo.
Livro de cabeceira para quem quer lucro a qualquer custo
Curiosamente, está estampado na capa que este é o “livro de cabeceira de Marcel Telles, fundador da AMBEV”. Talvez, em uma nova edição, a editora resolva acrescentar que este mesmo Marcel Telles é um dos três acionistas de referência da Americanas. Também uma das maiores fortunas do país.
Sim, Americanas, empresa listada na Bolsa de Valores de São Paulo e, também, de Nova York, que em 11 de janeiro de 2023 abalou o mercado de capitais brasileiro com o anúncio de um escândalo de enormes proporções. Naquele dia, o recém-empossado CEO, Sergio Rial, e o CFO, André Covre, comunicaram em fato relevante que identificaram um “erro contábil” estimado na época em 20 bilhões de reais. Veja o histórico de comunicados e fatos relevantes da Americanas aqui.
Entre muitas descobertas sobre este vergonhoso escândalo, consta que ele vinha sendo literalmente gestado havia pelo menos 7 anos, ou seja, pelo menos 28 balanços trimestrais foram fraudados. Não bastasse a barbaridade de se tratar de uma empresa do Novo Mercado, que em tese deveria primar por normas muito rigorosas de transparência, os balanços foram chancelados por empresas independentes.
Em resumo, a Americanas se utilizava do expediente chamado risco sacado para inflar seus resultados. Pegava dinheiro no sistema financeiro para pagar seus fornecedores, mas não lançava nos balanços que a dívida, incluindo seus custos, era com os bancos, mas sim com seus fornecedores que, no balanço, não tinha custo.
Outra descoberta dantesca deste escândalo é que os acionistas em geral, incluindo os acionistas de referência, dentre eles Marcel Telles, receberam milhões de reais de dividendos que não existiriam se os balanços não tivessem sido fraudados. Isto para não falar dos polpudos bônus dos diretores. Leia mais sobre o escândalo nos meus artigos da época: O escândalo das Americanas e a Bolsa de Valores e Rombo das Americanas: 7 perguntas à espera de respostas.
Alô, CVM, a Americanas continua listada no Novo Mercado. Transparência? Compliance? Ela desmoralizou o Novo Mercado e vocês ainda a mantêm ali? Por quê? Leia a análise que fiz quando o escândalo completou um ano.
Isto se aprende na Havard Business School?
Bob Fifer, autor do livro em questão, é um egresso da Havard Business School, uma instituição de ensino secular, recorrentemente listada entre as cinco melhores do mundo, uma referência mundial.
Custo crer que a convicção formada pelo autor espelhe os princípios éticos de Havard. Custo crer que qualquer instituição de ensino fomente em seus quadros que os fins justifiquem os meios, que uma empresa pode buscar lucro a qualquer custo.
Ao defender, por exemplo, que, para potencializar o lucro, você pode deixar de pagar seu fornecedor por até dois anos, esquece que o outrem existe e que tenha compromissos e, até por isto, talvez tenha que se submeter à humilhação de implorar que se faça o pagamento, que se cumpra com o seu dever.
A veia que pulsa no livro na forma de dicas, sugestões e convicções evidenciam um divisor de águas entre os que respeitam princípios éticos consagrados na história como solidariedade, educação, honestidade e aqueles que insistem em violar tais princípios protegidos pelo manto da impunidade; enganam-se por imaginarem que a violação não tem efeitos práticos, como violência, pobreza, entre outras. Certamente estes dirão que o célebre mantra de Gandhi “olho por olho e o mundo ficará cego” é apenas mais um aforismo.
Dicas preciosas
Admito que algumas sugestões que constam no livro me despertaram para diversas práticas que, se aplicadas em qualquer empresa, teriam o condão de torná-la mais eficiente e lucrativa.
Algumas delas, no tocante à redução de custo, fazem muito sentido, como:
- “Crie um senso de urgência.” (Pág. 47)
- “Transforme o ato de gastar em um processo difícil, que deve passar por vários trâmites para ser justificado.” (Pág. 60)
- “Proíba a compra de passagens de primeira classe para qualquer membro da empresa, inclusive para você.“(Pág. 86)
- “Quando se estabelece um preço, nunca se dá atenção aos custos. Usa-se o preço que o mercado pode pagar.” (Pág. 176)
Justiça social x meritocracia
A convicção do autors obre a tão falada meritocracia é outra artéria que pulsa no livro. Ele defende que o critério exclusivo de ascensão no quadro funcional de qualquer empresa seja a tão sonhada meritocracia.
Parece ser senso comum admitir que este critério deveria, sim, ser indutor da mobilidade social. Em uma empresa, é possível identificar pessoas diferenciadas em habilidades e competências, e usar este quantitativo para ascensão.
Mas atentemos para o fato de que este universo não é representativo. A questão que está posta é que, na vida como ela é, o buraco é mais embaixo e muito maior.
É mais embaixo porque estamos longe das mais básicas condições de equidade, algo básico para se tentar mensurar o tal mérito. Se, de partida, as condições são radicalmente diferentes, como admitir que fulano tem mais ou menos mérito do que sicrano? No limite, esta tal meritocracia baseada em resultados quantitativos de produção, de lucro, pode induzir a deformações e aberrações como preterir uma profissional pelo fato de que ela poderá ficar grávida e ter direito a quatro meses sem “produzir” resultados para a empresa.
Críticos dirão que o livro tem como foco o universo empresarial, competitivo e controlado e que neste caso podemos, sim, falar de meritocracia. Receio afirmar que até mesmo neste caso é preciso cuidado para usar esta terminologia carregada de juízo de valor. Talvez fosse mais adequado falar em algo como: fulano fez por merecer a promoção. Com isto, evitamos atribuir a falta de mérito do outro que não foi promovido.
Educação financeira
Tenho acompanhado o frenesi que se instaurou nas redes sociais sobre a educação financeira em geral e, principalmente, nas escolas, e admito que não estou gostando nada do que vejo.
É aterrorizador constatar que este tema tem sido com muita frequência tratado com um só objetivo: como ganhar dinheiro fácil e rápido. Basta ver a quantidade de influencers, pessoas leigas na seara de educação, falando de educação. Mostram não saber que educação é processo, em geral, lento, gradual e complexo.
É por estas e outras que tenho defendido a estruturação de um projeto nacional de educação financeira nas escolas que assente nitidamente qual é o seu papel no processo de ensino-aprendizado, que, no meu entendimento, como profissional da educação e, também, como pai, deve se constituir uma subsunçora, como conectora de saberes, portanto, como meio, jamais como um fim em si mesma.
Namaste

