
O escândalo da Americanas: 1 ano depois
Histórico do escândalo da Americanas
O escândalo da Americanas, um dos maiores da área financeira do Brasil, veio à tona no dia 11 de janeiro de 2023 com um fato relevante assinado pelos diretores Sergio Rial (presidente) e André Covre (relações com investidores). Ambos haviam assumido no dia 2 de janeiro e pediram desligamento após a divulgação do documento, que dizia o seguinte:
“Numa análise preliminar, a área contábil da companhia estima que os valores das inconsistências sejam da dimensão de R$ 20 bilhões na data-base de 30/09/2022. A companhia estima que o efeito caixa dessas inconsistências seja imaterial.” Fonte: https://ri.americanas.io/
No dia seguinte, 12 de janeiro de 2023, o mercado precificou o rombo anunciado: queda de 77% no valor das ações, passando de R$ 12,00 para R$ 2,72. Quem achava que este era o fundo do poço enganou-se. No dia 19 de janeiro de 2023, a varejista entrou com pedido de recuperação judicial, e novamente o mercado reagiu, fazendo as ações chegarem a R$ 0,79.
Um ano depois do escândalo da Americanas, a companhia se consolidou como uma penny stock, ações que são negociadas na casa dos centavos de reais.
Inconsistência contábil: eufemismo para rombo financeiro
Um colossal rombo financeiro, que estava sendo gestado havia vários anos, foi “milagrosamente” identificado pelos novos diretores em menos de uma semana. Oficialmente, chamaram o rombo de “inconsistência contábil”.
Todo o mercado financeiro ficou atônito, incluindo até mesmo as pessoas mais incrédulas e apedeutas. Afinal, falava-se à época que a empresa tinha feito balanços trimestrais “equivocados” (fraudados?) por sete anos consecutivos, totalizando 28 balanços e um montante de R$ 20 bilhões. Um detalhe: esses balanços haviam sido auditados por empresas especializadas. Uma delas é uma das quatro maiores empresas de auditoria do mundo, a PriceWaterHouseCopers (PwC).
O malabarismo contábil da Americanas
A Americanas, por muito tempo, utilizou-se de uma operação legal conhecida como “risco sacado”, na qual as dívidas com centenas de fornecedores eram quitadas tomando-se dinheiro emprestado no sistema financeiro (bancos), para o qual ela deveria pagar juros deste dinheiro.
Nos balanços trimestrais publicados, a Americanas tinha como praxe, até então não detectada, lançar a dívida como sendo junto aos fornecedores, e não para os bancos. Assim, ela ocultava que aquela dívida tinha um custo elevadíssimo. Dito de outra forma: a dívida da empresa era imensamente superior àquela conhecida pelo mercado.
Saltam aos olhos diversas nuances dessas operações. Uma delas é que ninguém as detectou por vários anos. Em menos de dez dias, a nova diretoria identificou o truque mágico do sucesso.
Sócios referência: eminências pardas
No quadro da composição societária da Americanas, figuram três nomes muito conhecidos do mercado: Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Carlos Alberto Sicupira. São os chamados sócios referência.
Apesar da crise aguda da Americanas, os três ainda estão na lista das maiores fortunas do Brasil e do mundo da revista “Forbes”. Leman ocupava, em 2023, a terceira posição do ranking brasileiro, com uma fortuna avaliada em aproximadamente R$ 74,9 bilhões. Logo atrás, na quarta segunda posição, vinha o seu sócio Marcel Telles, com R$ 50,4 bilhões. Sicupira e família ocupavam a quinta posição, com R$ 41,3 bilhões.
Novo mercado, e a “governança diferenciada”?
A perda da confiança no mercado foi um dos principais prejuízos causados pelo escândalo da Americanas. O fato foi um soco no estômago das pessoas que acreditavam na lisura das empresas do Novo Mercado, como era o caso da Americanas, principalmente porque a bolsa de valores demorou muito para tomar uma atitude. Só foi suspender a Americanas do Novo Mercado por tempo indeterminado, fato inédito até então, em novembro de 2023.
Lembremos que o Novo Mercado surgiu no ano 2000 e almejava um “padrão de governança altamente diferenciado”. Passou por revisões em 2006, 2011, 2018 e 2023, sempre buscando aprimorar mecanismos eficientes de transparência. Uma das marcas registradas das empresas do Novo Mercado é que só suas ações ordinárias (ON) são negociadas na bolsa, de maneira que todos os acionistas são submetidos às mesmas normas de distribuição de proventos.
Ao que tudo indica, todo esse cuidado não foi capaz de evitar que, por muito tempo, a Americanas maculasse em definitivo o selo de governança concedido a quem estivesse listada no NM. Estranha também a demora da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), a xerife do mercado financeiro, para excluí-la do Novo Mercado, uma vez que os diretores da própria empresa espontaneamente confessaram o delito.
O rombo do escândalo da Americanas não era de R$ 20 bilhões
Alguns meses após explodir o escândalo da Americanas, a nova diretoria empossada determinou uma nova auditoria independente nos balanços anteriores para identificar quando esse malabarismo começou.
À medida em que as investigações avançam, novas surpresas péssimas vêm à tona. Por exemplo, o rombo financeiro era muito maior do que o valor noticiado no fato relevante de janeiro de 2023. Não era de R$ 20 bilhões, mas de cerca de R$ 45 bilhões.
A título de comparação, este valor corresponde a aproximadamente 25% de todo o orçamento previsto para 2024 no Ministério da Educação.
Investigações para apurar as causas do escândalo da Americanas
Depois que estourou o escândalo da Americanas, abriram-se algumas frentes de investigação, entre elas, uma comissão parlamentar de inquérito (CPI) na Câmara dos Deputados, que convocou diversos atores deste drama.
Meses após a abertura da CPI, mais especificamente em setembro de 2023, a conclusão do relatório do deputado Carlos Chiodini (MDB-SC) é que não conseguiram caracterizar e imputar responsabilidades aos atores do escândalo da Americanas. Vale destacar que ex-diretores convocados usaram seu direito constitucional de permanecer em silêncio. Houve gente que nem compareceu à CPI. Consta no parecer aprovado:
“…os elementos até então carreados não se mostraram suficientes para a formação de um juízo de valor seguro o bastante para atribuir a autoria e para fundamentar eventual indiciamento.” Fonte: Portal da Câmara dos Deputados
Tal dificuldade apontada pela CPI encontra eco em uma declaração do novo CEO da Americanas, Leonardo Coelho, em novembro de 2023: “o mecanismo engendrado para fraude contábil foi ‘complexo’, ‘engenhoso’ e realizada por uma espécie de ‘feudos’ internos”. Fonte: https://www.infomoney.com.br, 16.11.2023.
Por seu turno, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM), à época do anúncio do escândalo da Americanas, constituiu uma força-tarefa que tem atuado em várias frentes, ouvindo diversos ex-diretores e até mesmo um dos acionistas de referência, Carlos Alberto Sicupira.
Uma das frentes de investigação apura o uso de informações privilegiadas (insider trading), em que alguém opera com nítidas vantagens sobre os demais operadores. O próprio Ministério Público também está atuando nesta trincheira de investigação e conta com delações premiadas de alguns dos envolvidos no escândalo da Americanas.
Na paralela às investigações, a CVM instaurou oito processos administrativos. Entre eles, dois se referem a possíveis irregularidades das empresas de auditorias, a PwC (2019-2021) e a KPMG (2017-2018), que neste período chancelaram a probidade dos balanços da empresa.
Perguntas que não calam para explicar o escândalo da Americanas
Parece não haver dúvida alguma quanto à complexidade da logística engendrada para falsear os verdadeiros números da Americanas. Apesar disso, algumas perguntas permanecem no ar. Algumas eu já tinha feito no post “Rombo da Americanas: 7 perguntas à espera de respostas”, em fevereiro de 2023, e até agora não foram respondidas. Também já escrevi sobre a relação do escândalo das Americanas e a Bolsa de Valores no mesmo mês. De todo modo, ainda precisam ser respondidas as seguintes perguntas, sob pena de mais uma vez ratificarmos a máxima de que este não é um país (semi) sério:
-Como a nova diretoria conseguiu em tão pouco tempo (uma semana) descobrir uma fraude contábil que era aplicada havia vários anos na Americanas?
-Os indícios de insider trading são muito fortes. Afinal, alguém operou no mercado com informações privilegiadas?
-Os acionistas de referência de fato nunca souberam de nada? Não têm nenhuma responsabilidade?
-As empresas de auditoria foram ou não cúmplices nesse processo? Elas têm ou não têm responsabilidade no escândalo da Americanas? Se não foram cúmplices, foram apenas incompetentes?
– Por fim, quanto tempo mais será necessário para que os verdadeiros responsáveis sejam exemplarmente punidos?
Em tempo: sem geração de renda, não há que se falar em educação financeira.
Gassho!

